sábado, 2 de junho de 2012

“O ser humano é uma conquista, não é por termos nascido humanos que já o somos”

Grande Entrevista 

Luís Falcão, licenciado em argumento cinematográfico pela escola superior de teatro e cinema. Publicou em 2007 o livro de poesia Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos. Actualmente, lecciona a disciplina de Estruturas Narrativas na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes aos alunos de Vídeo e Cinema Documental. Falou sobre o seu mais recente livro e onde e como se inspira para escrever. Abordou ainda o que pensa sobre o percurso atual do cinema português. 

Publicou em 2006 um livro intitulado “Pétalas Negras que ardem nos teus Olhos”. Podia-nos falar um pouco do seu livro e qual foi a receptividade do público?

Penso que o livro tem sido bem recebido. Todas as indicações que tenho tido têm mostrado que as pessoas se relacionam muito com ele. É difícil para alguém que escreve perceber ate que ponto é que alguma coisa que é nossa é recebida pelos outros, mas tenho sido bastante acarinhado, o que me faz sentir muito satisfeito. Não foi um livro lançado, pois fiz questão de deixa-lo um pouco ao abandono e perceber ate que ponto é que as pessoas se poderiam relacionar com ele. Acabei por ir constatando que à medida que iam passando as pessoas iam descobrindo o livro e isso foi extraordinário para mim.

ESTA Jornal O que é para si a escrita?
L. F - É uma dor tremenda, uma luta constante, mas sobretudo um sentido de obediência a um anjo que nos visita. Não sinto que seja responsável pelo resultado final, pois sinto que o grande trabalho que eu tenho é o de estar à escuta e lutar contra aquilo que me pode perturbar de escutar e de acolher essa visita desse anjo, que de algum modo trás alguma coisa para me dar.

ESTA Jornal - Onde se sente mais à vontade para escrever os seus livros?
L. F - É uma coisa curiosa porque eu sinto que as ideias, as imagens e as palavras chegam mais frequentemente quando estou em viagem e quando corto com o espaço de rotina, como se de algum modo a alma precisasse de cortes e fracturas para poder ser visitada. Tenho a sensação que é sempre nos momentos em que me afasto do que é conhecido e confortável que crio espaço para que alguma coisa aconteça. Quando estou numa situação qualquer de não conforto é que as coisas podem acontecer.

ESTA Jornal - Que preocupações tem quando ensina cinema?
L. F. - A minha grande preocupação é passar aos alunos a importância de ter um olhar, uma voz e uma fidelidade própria ao seu caminho. Penso que estas são as questões mais importantes para quem quer alguma vez fazer um trabalho que seja válido, pois acredito mesmo que é na fragilidade que radica a maior força. Na fragilidade do nosso olhar, na medida em que somos únicos, na medida em que somos apenas pessoas que olham as coisas a partir de um determinado ponto de vista, que não é partilhável com ninguém, na medida em que cada um de nós ocupa o seu lugar, o seu próprio ponto. Sinto que é tentar de algum modo mostrar aos alunos a importância do ponto que eles habitam, daquilo que eles são, daquilo que de insubstituível e milagroso que cada um deles tem em si e preservarem e acarinharem essa dimensão única e insubstituível, porque é disso que a sua obra se irá alimentar. Para mim o que verdadeiramente conta no ensino e no que quero passar aos alunos é a importância deles perceberem que aquilo que têm para dar já neles habita e o que importa é que não percam aquilo que já têm ao longo do percurso académico, porque muitas vezes o que acontece é que vamos sendo tão inundados de tantas perspectivas que acabamos por esquecer que aquela que é única é exactamente a nossa e essa é que é importante.

ESTA Jornal - Então a escrita para eles é essencial?
L. F - Espero que sim. Sinto que se eles aprenderem a importância de algumas das reflexões que temos vindo a tomar desde o início dos tempos… Eu nas minhas aulas falo muito na importância e na ocorrência de ideias desde o princípio dos tempos e chego sempre à conclusão que aquilo que conta para o ser humano continua a ser coisas muito limitadas: o amor, o medo de morrer, o que fazer para preservar o amor, como não perder a esperança, como perder o medo, como lidar com a morte de uma forma digna. Há uma série de questões que os homens nunca deixaram de colocar para às quais nós, ainda hoje, continuamos a ter que encontrar respostas e creio que é nesse número muito reduzido de questões verdadeiramente importantes que cada um de nós pode encontrar o ponto onde verdadeiramente pode fazer alguma coisa de único. Isto de conhecer o pensamento e a reflexão humana não é limitador, pelo contrário, percebemos que cada um de nós nesta tremenda fragilidade, nesta ausência de respostas e de caminhos pode ter uma palavra a dizer na sua singularidade. Eu e o meu amigo, que agora está aqui sentado à minha frente, sentimos o amor, a morte, a doença, a amizade de uma maneira absolutamente única e é dessa forma como vivemos e sentimos todas essas experiências que podemos acrescentar um novo matiz à forma como a humanidade olha para estas questões, mas isto é verdadeiramente o trabalho do artista, acrescentar novos matizes à realidade.

ESTA Jornal - O ser humano está sempre à procura de algo. É isso que pretende transmitir?
L. F - Sim, sinto que verdadeiramente é isso. Creio que verdadeiramente o ser humano é uma conquista, não é por termos nascido humanos que já somos humanos, eu acho que nós nos tornamos humanos na medida em que percebemos que temos a possibilidade de nos afastar da animalidade, de procurar outras dimensões que nos colocam num patamar mais alto. Creio que a espiritualidade é uma questão fundamental, espiritualidade no sentido em que nós somos capazes, enquanto seres humanos, de criar mundos invisíveis, de perceber que há outras formas de habitar o tempo e o mundo, que são distintas daquela que a maior parte que os seres humanos nos dizem que são as únicas na vida. Há outras formas de viver e creio que ao longo da experiência humana o que nós devemos é nunca perder de vista esta tentativa de tentar encontrar uma forma mais profunda de viver esta experiência que nos é dada acho que este é um trabalho que nunca pode deixar de ser feito e cabe-nos a nós que estamos agora a viver este tempo encontrar uma nova forma de responder a estas questões porque as questões são eternas, a forma como nós vivemos e o tempo que nos é dado a viver é que não, mas nós podemos encontrar uma forma mais profunda de viver este tempo que agora é o nosso. 

ESTA Jornal - O amor seria solução para acabar com o egoísmo?
L. F - Pois, nem sempre é fácil amar aqueles que nos fazem mal, de facto nós sabemos que a experiência do mal é das experiências mais fracturantes daquilo que é a experiência de vida e de percebemos até que ponto é que a dor e o sofrimento nos transformam, mas é exactamente aí que está a questão, é no momento em que nos somos capazes de interromper o círculo espiral da violência, a possibilidade de interrompermos a resposta violenta é uma das coisas mais importantes. Do ponto de vista da história das ideias nós temos visto como isso foi fundamental com o Gandi com o Mandela e repare, nós não estamos a falar de deuses, estamos a falar de homens que foram capazes de, em momentos históricos e de uma perspectiva política, dar uma resposta à humanidade clara: que uma resposta não violenta contra uma atitude violenta pode estancar essa violência, não que estanque imediatamente, mas pelo menos a pessoa que sofre o acto violento eleva-se a uma dimensão completamente distinta e protege-se, de algum modo, de sentir o ódio e o rancor, e eu sinto que aquele que sofre, aquele que permite que esse sofrimento se transforme em ódio, de algum modo corrói-se interiormente, e perde o que verdadeiramente importa: a sua própria essência que é obviamente o amor.

ESTA Jornal - Qual a sua opinião sobre o cinema Português?
L.F - A minha opinião é que o cinema português ainda não encontrou espaço para se tornar complexo. O cinema português vive numa espécie de trincheira, em que se dividem os filmes comerciais e os filmes de autor e ainda não ouve espaço para se perceber que uma espécie de terceira via, em que se pudessem contar histórias com inteligência, sensibilidade e sem que isso significasse, imediatamente, ser cinema comercial, ou que isso significasse ser filme de autor era o ideal. Quando nós pensamos num realizador como o krvysztos kieslowski percebemos que é alguém que está a contar histórias, mas ao mesmo tempo conta-as com uma dimensão autoral muitíssimo profunda e muitíssimo marcada. Em Portugal ainda não houve espaço para aparecer alguém como o krvysztos kieslowski porque as pessoas sabem que ou vão pertencer à trincheira dos autores, ou vão pertencer à trincheira dos ditos filmes comerciais e isto, empobrece muito a palete do cinema português.

Nota - Excerto de uma entrevista que fiz para uma unidade curricular quando estudei no curso de Comunicação Social em Abrantes para ser publicada no jornal da escola. 



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